A passagem do carrinho do sorvete era a hora mais agradável do dia. Juliana se colocava na janela, cotovelos sobre almofadinhas – para não deixar manchas – e o olhar na esquina. O sino tocado pelo sorveteiro e o seu inconfundível grito atraia a molecada da rua e Juliana, o dobro do tamanho e da idade.
Nina, como a família a chamava desde criança, estudava o quarto semestre do curso de Nutrição, pela manhã, e trabalhava meio período, de tarde, como digitadora no almoxarifado de um hospital, para pagar a faculdade. O troco virava sorvete.
A saída do trabalho era cronometrada para dar tempo de tomar um ônibus – o 1456 passava as 17h15; tomar banho, entre 17h20 e 17h35; e esperar o sorveteiro. Ele dobrava a esquina pontualmente as 17h45, com um sol já meio amarelo meio rosado servindo de guia.
Sorvete na mão, restava atravessar a rua e sentar no banco da pracinha, lugarzinho agradável que ficava bem em frente à sua janela. No banquinho, entre uma lambida e outra, Nina pensava na sorte em morar numa metrópole que ainda mantinha cantinhos atemporais como aquela praça.
De vez em quando, a voz da professora da faculdade explicando sobre os riscos da gordura trans para as coronárias tentava atrapalhar a degustação. Mas Nina fazia ouvidos de mercador. Para saborear sorvete basta a língua e a vontade. Audição e bom senso serviam para as aulas, para ouvir a choradeira da melhor amiga contando pela décima quarta vez como o namorado dera um fora descomunal e para o trabalho. Se bem que no trabalho, Nina vivia momentos de quietude que só não eram tão bons como as tardes na pracinha porque faltava justamente o sorvete.
Naquela tarde, Nina atravessou a rua com a sua casquinha recheada e sentou no banco sob o pé de goiaba. A árvore estava florida e o cheiro das flores lembrava o doce de tacho que Rosa fazia. Depois que terminasse de se entregar aos devaneios de fim de tarde e de esvaziar e comer a casquinha, naco a naco, havia um trabalho sobre alimentos energéticos e uma apostila sobre desnutrição e seus sintomas para ler. Os dois esperavam pacientemente sobre a cama até que o sorvete terminasse. E ele ainda estava no começo.
A voz soou quase ao ouvido de Juliana. “Tia me dá um pouco”. Ela olhou de soslaio e fingiu que não tinha visto o garotinho de cara suja ao lado do banco da praça. Deu outra colherada no sorvete e quando já levava a colher à boca ouviu de novo, em tom mais suplicante: “Tiaaaaa, dá um pouco. Vá aí, na moral”.
Suspiro de resignação. Uma casquinha transbordando muda das mãos manicuradas de uma estudante de nutrição de 27 anos, para as mãozinhas sujas e desnutridas de um garoto sem nome, aparentando seis ou sete anos.
A língua do menino tocou a pele gelada do sorvete, mas o sabor quem sentiu foi Nina. Ela conhecia de memória cada variação: forte, suave, meio amargo, um docinho que travava no final.
Já ia se levantando do banquinho da praça, imaginando que encarar a desnutrição em forma de apostila não seria tão fácil depois de vê-la ao vivo e tomando sorvete, quando a vozinha falou de novo, dessa vez irritada: “Pooooh tia, vê se da próxima vez escolhe um sabor mais doce. Sorvete de limão eu não gosto”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário