quinta-feira, 13 de março de 2008

À sombra do avô

O avô de Maria Paula morreu um dia antes de ela completar sete anos. Essa foi a sua primeira grande frustração. Com o passar dos anos outras viriam, mais intensas e até com trilha sonora. Para casos de dor de cotovelo, Édith Piaf, descoberta tardiamente no porta CDs de um equivoco que atendia pelo nome de namorado, revelou-se grande companheira. A frustração nem se devia tanto à morte do avô. De qualquer modo ele iria morrer, porque desde bem pequena, Maria Paula ouvia as conversas em casa sobre a morte. “Todo mundo vai morrer um dia”, vaticinava a mãe. Perder um ente querido nunca foi um mistério para aquela família. A dor da perda era inevitável, vivia-se a dor. Esgotavam-se as lágrimas. A memória do morto era exaltada, desde que não ferisse o bom senso. A máxima de que basta morrer para virar santo não era uma realidade na casa de Maria Paula, pelo menos não entre os pais, que faziam questão de dizer das pessoas as suas qualidades, mas nunca esqueciam um defeito aqui e outro ali.

A primeira decepção entrou na vida de Maria Paula pela cozinha e tinha gosto de glacê. Escondeu-se no armário do quarto, disfarçada em carinhas de palhaços multicoloridos e recheadas com chicletes. O aniversário foi exaustivamente planejado para ser uma festa de arromba e uma sessão de exorcismo. Maria Paula havia traído as estatísticas da sua cidadezinha de país do terceiro mundo e sobrevivera aos primeiros sete anos de vida.


A noite fria e chuvosa era de silêncio. Exceção à ausência completa de som: um leve tilintar da corrente que prendia o cachorro no quintal. Vez por outra o animal de estimação da família se mexia e a corrente deixava escapar um lamento baixinho, quase inaudível. Na casa bem quietinha, com uma menina quietinha sentada no sofá da sala, um avô enorme, que mais parecia um pé de jacarandá, cumpria a última etapa de um lento definhar. Deitado na cama de casal onde os pais de Maria Paula costumavam dormir antes da doença do patriarca, o avô esperava que no check list do dia, o seu nome estivesse incluído no rol dos visitados pela morte naquele inverno.

O destino é irônico. No ano em que a neta contrariava os dados do IBGE para o óbito de crianças e o governo iniciava a propaganda com vistas à reeleição – “Conseguimos reduzir a mortalidade infantil e praticamente erradicamos a pólio no país” -, o avô entrava para a estatística de idosos mortos por pneumonia devido a uma onda de frio não sentida desde o final do século anterior.

Maria Paula prendeu a respiração quando tia Diva entrou na sala. Pela cara da tia, pelos olhos vermelhos e pelo fungar característico, a menina percebeu que os seus palhaços de chiclete jamais sairiam de dentro do guarda-roupa. Onde na véspera haviam sido guardados até o inicio da festa. Ficariam ali por longos meses, até por anos ou décadas. Um dia, remexendo as tralhas da infância, Maria Paula encontraria algum remanescente dos palhaços de chiclete e suspiraria para o seu caçula: ”Foi tia Diva quem fez para a festa do meu aniversário de sete anos. Mas naquele ano, vovô morreu e a festa foi cancelada”.

Os chicletes acabaram. Além de não pertencerem a categoria de coisas que duram décadas, eram doces demais, vermelhos demais, convidativos demais.

Tia Diva foi a primeira de uma comitiva de adultos de nariz escorrendo e olhos vermelhos a entrar na sala. A procissão sentou-se no sofá, espalhou-se pelas duas poltronas laranjas, esparramou-se no tapete. O pai, a mãe, a tia, os dois irmãos mais velhos, vovó e Zefa, limpando as mãos de açúcar de confeiteiro no avental. Nenhum deles precisou abrir a boca. Maria Paula sabia.

Deixou os adultos carpindo a sua dor e relembrando qualidades e defeitos do falecido e foi até o quarto, onde o avô repousava como uma grande árvore que cai no meio da floresta. Se não fossem as raízes expostas, ninguém diria que vovô-jacarandá morreu. Maria Paula sentou-se aos pés da cama. Prestou bem atenção para ver se a camisa do avô tremia com a respiração. Chegou mais perto. Tentou ouvir o som do ronco. Silêncio. Tocou a testa fria, as mãos grandes que fabricavam casinhas de boneca.

Na cozinha, viu o glacê desabado do bolo. Escorria sobre a pia. Meio açúcar derretido, meio lágrimas de Zefa.

O enterro de vovô foi um acontecimento. Um pouco político, quase jornalista, boêmio de carteirinha, amigo de todas as horas, vovô tinha admiradores, fãs incondicionais, gente que lhe devia a vida, o dinheiro do remédio do filho asmático ou a feira da semana; além de uma legião inconsolável de viúvas. Felizmente todas muito discretas e sem intenção de afrontar vovó.

Discurso do padre. Discurso dos amigos. Discurso dos filhos. Outro sermão do pároco cuja igreja vovô ajudou a construir. Mais discurso dos amigos. Duas ou três viúvas inconsoláveis ensaiaram abrir a boca, mas diante do olhar de vovó, desistiram. A terra se abre e o caixão desce à sepultura. Coube ao pai de Maria Paula, primogênito e único varão, a primazia da mão de cal. As rosas choviam.

Maria Paula, até então quietinha e segura pelas mãos de tia Diva, tirou do bolso uma coisa que parecia cartolina. “Obrigada vovô, pelas casas de boneca, pelas histórias da carochinha e por roubar a minha festa de aniversário”.

Os coveiros, que não podiam ouvir o discurso em forma de pensamento da menina de sete anos, se esforçaram para evitar que a terra, apressada em engolir vovô, cobrisse depressa demais a carinha de palhaço recheada de chicletes que sorria da tampa marrom do ataúde.


Andreia Santana

2 comentários:

Mattys disse...

Eu nao li o conto ainda, mamae, mas tenhoi certeza que eh maior que as lavadeiras!!! Contos muito longos nao, contos muito longos nao!!!!

Andreia Santana disse...

O problema meu anjo é que tem histórias que não dá pra interromper ou quebrar em capítulos. Tem histórias que simplesmente precisam ser contadas. Não importa em que tamanho.